sábado, 10 de novembro de 2012

Pinga não, cachaça!

É boa, mas tão boa, que já entra nas casas pela porta da frente   Por Paulo Kehdi

Cachaçarita

A cena vem se tornando cada vez mais freqüente e corriqueira nos bares mais badalados da capital. Assim que chegam, clientes dos mais variados perfis abrem a noite com drinques à base de cachaça, ou pura. Sem cerimônia. Não faltam motivos para isso. Um é o preço. Um rápido comparativo com outros destilados, como o uísque, mostra que invariavelmente a cachaça é mais barata. Se uma dose de uísque de qualidade custa cerca de 18 reais, um cálice de cachaça nobre, purinha, pode custar um terço disso.
A impressão de que o que é mais barato necessariamente é pior desfaz-se ao primeiro gole. É difícil resistir ao sabor de uma aguardente envelhecida em madeira. Surpreende a suavidade de uma bebida de teor alcoólico relativamente alto - entre 38% e 48%, enquanto as cervejas têm de 0,5 a 7% e os vinhos de 7 a 18% - e cuja história se confunde com a do próprio Brasil.

Foi no início do século XVI que os portugueses trouxeram da Ásia para cá a cana-de-açúcar, planta tipicamente tropical, com a intenção de introduzir no país a produção de açúcar. Os primeiros engenhos foram instalados em 1532, na capitania de São Vicente, no litoral Sul paulista. E meio por acaso descobriu-se o vinho da cana, chamado de cagaça ou garapa azeda, de fácil fermentação e que servia de alimento para animais. A idéia de destilar esse caldo veio rapidamente. Surgia, assim, a cachaça - 100% brasileira.

Cachaças no Emporium

Inicialmente destinada a escravos, ela logo caiu no gosto popular. De meados do século XVI até metade do século XVII os alambiques -ou casas de cozer méis, como está registrado em livros de estudiosos -, se multiplicaram nos engenhos. O destilado tornou-se um protagonista do cenário social e econômico, e marca registrada nacional.

Porém, hoje os tempos são outros e a cachaça destilada artesanalmente vem perdendo terreno para a cachaça de coluna, ou industrial. A busca por qualidade, aliada a fatores ambientais e tecnológicos impulsionaram a industrialização. Por ter um período de safra relativamente grande - seis meses, de maio a novembro - o corte da cana-de-açúcar exige planejamento e produção em larga escala para que se consiga aproveitar o seu pico de maturação, o que significa obter a maior concentração de açúcar possível por pé. São mais de quarenta variedades da planta, que exigem um trabalho de mapeamento e logística, e que culminam com a otimização de sua colheita. Sem falar nas diversas etapas de produção da cachaça, que exigem cuidados.

O professor Jorge Horii, coordenador do setor de açúcar e álcool da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, de Piracicaba (SP), faz experimentos em colunas de destilação em busca de cachaça mais neutra. E desenvolve aparelhagem que permitirá uma apurada análise do produto. Para ele, a tecnologia é imprescindível para alcançar bons resultados. "Quanto maiores forem as etapas de moenda da cana, maior será o rendimento de extração. Na fermentação, é preciso de aquecimento e tratamento ideal do produto, trabalhando a sua concentração e temperatura. Tudo isso é necessário para que se consiga a homogeneização do caldo, condição básica para termos uma boa cachaça", explica Horii.

Sweet Cream

Uma destilação criteriosa, contínua, com diversos cortes, separando-se o chamado corpo, das impróprias cabeça e cauda, resulta num produto de qualidade. Mas para que a cachaça possa ser considerada nobre, além de toda a preocupação descrita, é preciso esperar pelo seu envelhecimento. "A cachaça é o único destilado que pode ser envelhecido ou não. Na ausência do envelhecimento teríamos a cachaça branca. As que possuem tonalidade amarelada é porque passaram pelo processo, três anos em média, em madeiras como o carvalho europeu, cabreúva, amendoim ou jequitibá, entre outras. Isso adiciona um sabor delicioso ao produto, traz suavidade e neutralidade", afirma.

Outro grande aliado do consumidor é a constante atualização da legislação brasileira com relação ao destilado. Desde 1995, não se têm economizado esforços para delimitar sua composição ideal. A Instrução Normativa 13, sancionada pelo Ministério da Agricultura em junho de 2005, estabelece padrões de qualidade e identidade, determinando sua composição química, métodos de destilação e condições de higiene, entre outros.

Como dá para adivinhar, os produtores da chamada cachaça artesanal, feita em alambiques, terão de trilhar este caminho para não desaparecer. Adquirir tecnologia para ter controle de qualidade e adequar-se à lei. Coisa que muitos já estão fazendo, especialmente na região de Salinas, no Norte de Minas. Números expressivos estão ligados a esse mercado. Segundo dados do Programa Brasileiro de Desenvolvimento da Cachaça, o Brasil produz 1,3 bilhão de litros por ano - 45% só no estado de São Paulo. Dessa cifra, 1 bilhão são industrializados e comercializados por cerca de 5 mil marcas. O setor, composto de 30 mil produtores, gera 400 mil empregos diretos.

Violeta de Outono

Marco Antonio Souza, funcionário do Emporium São Paulo há quatro anos, há três trabalha com as cachaças vendidas na rede. Aqui, ele dá algumas dicas para os iniciantes. "Apreciadores de cachaça procuram as envelhecidas, para serem degustadas na forma pura, gelada ou não. Já as brancas são boas para coquetéis, drinques e batidas. As com graduação entre 38 e 40% são as mais requisitadas, pelo sabor suave que apresentam. Um cálice antes e outro depois da refeição é a medida certa para o seu correto consumo", diz Souza.

Com as mais variadas denominações - vão de A, de abrideira; B, de branquinha; e C, de caninha, até o Z, de zuninga -, a cachaça vem adquirindo status de bebida nobre. Por isso, em muitos meios pinga virou xingamento. Seu sabor inconfundível promete transpor a última barreira a ser conquistada: o mercado externo. Só 1% da produção nacional vão para fora. A crescente qualidade do produto indica que isso é mera questão de tempo.