terça-feira, 6 de abril de 2010

Destilados


RICARDO AMPUDIA

Frutos de um paciente trabalho quase todo – ou às vezes totalmente – artesanal, as
bebidas destiladas têm o requinte das histórias que vão desde as florestas mexicanas
até os barris de carvalho escoceses.

Puro e sem gelo para aquecer no frio, gelado e com frutas para refrescar no verão. A versatilidade das bebidas destiladas está presente tanto no seu uso quanto na sua origem, já que podem ser feitas desde de um grão de centeio até de um imenso fruto mexicano.

Cada país tem sua destilada nacional e o Brasil não ficou atrás na conquista de paladares ao redor do mundo, com a sofisticação e a arte de produzir a cachaça. O caldo destes vegetais, ricos em açúcar e amido, são deixados em repouso, fermentando. O açúcar vira álcool sob a ação de microorganismos e a cada bebida toma seu caminho.

Brasileiríssima, cachaça

A dose escorrega boca adentro dando a sensação de refrescância, seguida de um calor picante que alcança a garganta e revela sabores conhecidos: baunilha, frutas, raízes. Paixão popular agora reservada também às boas mesas da gastronomia e apreciação de bebidas, a cachaça se destaca como o que há de melhor nas destiladas do mundo e tem gostinho de Brasil.

Fruto de um acidente, a cachaça foi descoberta pelos escravos que deixaram o caldo de cana desandar enquanto faziam melaço, e acabou fermentando. Resolveram cozinhá-lo mesmo assim e, das gotas do vapor que subia e liquefazia no teto – daí o nome popular pinga – perceberam um sabor agradável e refrescante. Estava criada a cachaça que, por muitos séculos, continuou estigmatizada como uma bebida das classes mais baixas, sem qualidade.

“Há pouco tempo não se encontrava a cachaça em restaurantes sofisticados no Brasil, o que deveria ser exatamente o contrário. Diferentemente daqui, em outros países a primeira coisa que lhe oferecem é a bebida nacional”, diz o sommelier Daniel Santos, professor de conhecimento de bebidas do Centro Europeu. Cachaça é um destilado da cana-de-açúcar que segue critérios definidos em lei nacional sobre a porcentagem de álcool e açúcar. Aguardente de cana é o termo genérico para destilados à base de
cana, podendo ser produzida em qualquer parte do globo – o rum, por exemplo é uma aguardente de cana – cachaça, só em território nacional, ainda que essa regra não seja respeitada em todos os continentes. “Para alguns países, em especial os Estados Unidos, precisamos exportar como brazilian rum, já que eles não reconhecem a cachaça como uma bebida específica”, diz Carlos Eduardo Lima, coordenador do Instituto Brasileiro da Cachaça.

O processo de destilação varia do artesanal – em alambiques de cobre e envelhecimento em tonéis de madeira – às gigantescas colunas de aço inox utilizadas nas indústrias para produção em larga escala. “Algumas dessas indústrias estão mais preocupadas com o volume de produção e não conseguem controlar a qualidade do sabor, por isso as de alambique são mais requintadas”, comenta o cachacier Maurício Maia, que há mais de 15 anos prova e aprova cachaças.

Poucas fábricas misturam os dois processos como é o caso da paulista Sagatiba – que mantém rótulos de cachaças artesanais e de colunada – e a cearense Ypióca, que desmonta as torres de destilação de inox e substitui algumas peças internas por cobre, segredo guardado a sete chaves na indústria, que é gerenciada pela mesma família há 160 anos. Em comemoração ao aniversário da empresa, a Ypióca lançou uma cachaça com malte, uma iniciativa inédita do mercado que promete agradar também os apreciadores de uísques.

Os especialistas são unânimes ao dizer que o cobre influi no sabor da bebida, mas a parte fundamental do processo é o envelhecimento. O líquido fica em repouso em tonéis de madeira, onde a troca de gases regula a acidez da bebida, responsável por provocar o ardor na boca. A acidez é provocada por fatores como o clima e o solo. Alguns produtores utilizam ainda a queima da cana, prática não recomendada e que aumenta significamente a acidez da bebida.

O período de repouso pode variar de seis meses a um ano e meio para as cachaças chamadas jovens ou até doze anos para as envelhecidas.

Caipirinha - Protegida por lei

Não só a pura cachaça ganhou o mundo afora. A caipirinha é a combinação mais conhecida e é feita exclusivamente com cachaça, limão e açúcar. A receita é protegida pelo Decreto 4.072, assinado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, em 2002.

Cinco anos antes, foi reconhecida pela Associação Internacional de Bartenders como uma das 50 bebidas mais importantes do século 21.

Os especialistas aconselham o uso de cachaça jovem e branca para o preparo de caipirinha. “A envelhecida também pode ser usada, mas vai interferir bastante no sabor do drinque. Porém, pode proporcionar um paladar agradável.

A recomendaçãao e que a cachaça seja artesanal, de fermentação natural. O limão deve ser Taiti, descascado. “Retirar a parte branca do interior do limão (aquele fiozinho branco) é fundamental para não amargar a bebida”.

Caipirinha, orgulho nacional

A caipirinha nasceu no interior paulista no século 18. Naquela época, a cachaça, abundante nos vilarejos, era consumida pura por seus apreciadores, todos homens. Para não abandonar o trago quando estavam doentes, eles a teriam transformado em remédio acrescentando limão e alho - ingrediente logo desprezado.

Muito tempo depois, na década de 1950, com a urbanização desses lugares, a bebida ganhou adeptos nas metrópoles e acabou ficando assim: cachaça, limão, açúcar e gelo, receita registrada como a versão clássica que tenta garantir a propriedade intelectual sobre as marcas Caipirinha e Cachaça na legislação internacional. Isso porque o sucesso do drinque atravessou fronteiras e, atualmente, figura no cardápio de coquetéis de restaurantes na Alemanha e nos Estados Unidos.

Sabores mil


Os defensores da tradição não trocam a cachaça por nenhuma outra bebida e muito menos aceitam outra fruta no lugar do limão. No entanto, muitos a preferem com vodca ou saquê, misturada a frutas como lima-da-pérsia, abacaxi, maracujá, carambola, jabuticaba, tangerina, lichia e frutas vermelhas - variações encontradas em todo o Brasil, confirma o barman Deusdete de Souza, do Veloso Bar, em São Paulo. Segundo ele, a caipirinha deve ser mexida com uma colher ou bailarina, sempre de baixo para cima. "Quando se usa a coqueteleira para misturar os ingredientes, vira batida de fruta", diz o barman.

Ele ensina outros truques: a bebida é colocada sempre no final e jamais se deve servir caipirinha com canudo, pois o sabor da mistura dos ingredientes não é sentido na boca. "Atualmente, a sensação na noite paulistana e em outras cidades do país é a saquerinha, feita com saquê, bebida à base de arroz que agrada bastante ao paladar das mulheres", conta Sérgio Marques, da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel).

Casamento perfeito

Poucos drinques contêm ingredientes que se harmonizam tão bem quanto os da caipirinha. De sabor tropical, é associada ao churrasco e à feijoada. Não é à toa, pois atua como adstringente no paladar e abre o apetite. Também faz par perfeito com petiscos. Tornou-se tão popular porque circula sem cerimônia por botecos de esquina e restaurantes sofisticados. E seu prestígio não pára de crescer: já consta na lista oficial de drinques da renomada International Bartenders Association (IBA), fundada em 1951 na Inglaterra. Assim, sirva caipirinha sem medo de errar. É bem-vinda em qualquer ocasião! (Revista Cláudia)