Hernane Lélis
São José dos Campos
A tradição de oferecer o primeiro gole de cachaça ao santo tem, entre muitas explicações, a ideia de que a entidade vai prover harmonia e fartura ao lar. A crença praticada exaustivamente nos alambiques do Vale do Paraíba tem caído por terra juntamente com a bebida. Mais próximos da máxima “santo de casa não faz milagre”, produtores de aguardente da região degustam o sabor amargo da crise que atinge o setor. Com produção anual de apenas 800 mil litros –46% menor que há quatro anos–, a atividade corre o risco de desaparecer com a falta de estímulos para que os engenhos continuem operando.
Ao lado de futebol, samba e Pelé, a cachaça aparece como um dos principais patrimônios brasileiros, sendo, inclusive, vocábulo de origem exclusivamente nacional com 140 sinônimos listados no dicionário. A bebida está ligada à cultura do Brasil, presente na gastronomia, na música e nas demais formas de arte e festas populares. A quantidade de referências, no entanto, é uma pequena dose da valorização que o produto, ou melhor, o produtor precisa ter para continuar no mercado. Somente no Vale do Paraíba 120 alambiques fecharam as portas desde 2008 por conta da alta tributação da bebida e da falta de iniciativas públicas que fomentem o comércio.
A baixa no setor tirou da região o título de maior produtor de cachaça de alambique do Estado de São Paulo, pertencente atualmente a Piracicaba e municípios do entorno. Nos tempos áureos, 1,5 milhão de litros de aguardente eram feitos por 270 engenhos que funcionavam em todo o Vale, garantindo renda para pelo menos 800 famílias. Mais do que indústria da cachaça, os alambiques da região querem ser vistos como uma espécie de indústria social, onde o importante são os empregos gerados, principalmente na zona rural, evitando o adensamento populacional nos cinturões das grandes cidades.
“Dezenas de pessoas ficam desempregadas para cada alambique que fecha, muitas sobrevivem apenas da atividade. Tem alambiques vendendo os equipamentos para tentar alguma coisa que lhe garanta um lucro na zona urbana. Muitos dos que saem da zona rural não possuem nenhuma capacitação profissional, além da usada no campo, e acabam no subemprego e morando na periferia em condições inferiores a que tinha na zona rural”, diz Flávio Ferreira, diretor da Associação dos Produtores de Cachaça Artesanal do Vale do Paraíba, entidade fundada em 2002 para ajudar os produtores de cachaça a fomentar a atividade, mas que existe hoje apenas no papel.
Ferreira é proprietário de um dos mais tradicionais alambiques do Vale, o Alambique do Antenor, no distrito de Piedade, em Caçapava. No local trabalhavam 12 pessoas na produção de três tipos de cachaça –hoje apenas dois ajudantes dão conta de todo o serviço, desde a matéria-prima de cultivo de cana-de-açúcar até o produto final comercializado diretamente no balcão. “A cachaça de alambique tem uma dificuldade enorme de chegar a um supermercado ou empório. A tributação e o custo de produção são altos e o revendedor tem dificuldade de comercializar. É impossível competir com uma cachaça industrial”, explica o produtor.