domingo, 15 de setembro de 2013

Cachaça - Mais um pouco de história

A cana surgiu no Pacífico Sul, seguindo, então, um roteiro que a levaria até à Índia, onde, pela primeira vez, cinco séculos antes de Cristo, o açúcar dela seria extraído. Da Índia, migrou para o Oriente Médio, região na qual foram criadas as primeiras rotas ligadas ao produto. Dali, a cana chegou ao Mediterrâneo, sendo cultivada, mais de mil anos depois, nas Ilhas Canárias, situadas no Atlântico. Dessas ilhas, foi transportada para o Brasil, transformando o Nordeste em seu reino e transformando-se, já a partir do século XVI, no principal produto colonial de exportação.

A cachaça, por sua vez, foi concebida, ainda nas primeiras décadas da colonização, na Capitania de São Vicente, onde hoje é o estado de São Paulo. No final do século XVI, registrava-se a existência de oito engenhos dedicados à sua produção. Inicialmente, a bebida não possuía grande valor comercial e era feita pelos escravos às escondidas, pois seus senhores não gostavam de vê-los consumindo-a. Foi assim até que ela caiu, de vez, no gosto popular – inclusive dos senhores – e virou, enfim, produto de exportação, entrando nas rotas comerciais que envolviam o tráfico negreiro, uma vez que encontrava enorme aceitação na África.

O termo “pinga” surgiu do vapor produzido pelo lento processo necessário para fermentar o líquido, na medida em que, ao subir, se condensava no teto e pingava. E a pinga doía quando caía nos escravos, o que teria gerado outro vocábulo: aguardente. Hipótese controversa, porém, pois a bebida proveniente da destilação já era chamada pelos alquimistas europeus, no século XII, de aqua ardens.

Ainda no período colonial, surgiu uma diferenciação entre a bebida importada e a nacional. Denominava-se bagaceira a bebida destilada importada de Portugal, enquanto se conhecia por cachaça a proveniente do Rio de Janeiro e de Minas Gerais. O cachaceiro, que posteriormente seria a denominação dada ao alcoólatra, significava, na época, apenas o comerciante da bebida. O termo cachaça, aliás, é especificamente brasileiro. Um profundo conhecedor do assunto, como Câmara Cascudo, não apenas asseverou a inexistência do vocábulo no Brasil, mas também afirmou nunca ter ouvido tal palavra em Portugal. Em espanhol, por sua vez, cachaça é uma espécie de vinho de borras.

A bebida caiu rapidamente no gosto popular e espalhou-se pelo Brasil à medida que o País ia sendo povoado. Em Minas Gerais, terra de ouro, de diamante, e de frio, a cachaça encontrou terreno fértil para produção e consumo. Os inconfidentes chegaram a elegê-la uma espécie de bebida nacional, símbolo dos brasileiros, a ser consumida de preferência ao vinho produzido pelos portugueses, considerado a bebida dos opressores.

Domingos Xavier, por exemplo, um dos líderes da Revolta, era dono de um alambique e saciava os participantes das reuniões com a cachaça por ele mesmo produzida. E, adiantando um pouco mais no tempo, é bom lembrar que os revolucionários de 1817, em Pernambuco, almejaram, também, a transformação da cachaça em símbolo nacional, em resposta a mais uma tentativa de proibição por parte dos renitentes portugueses.

Nesse ritmo, a bebida chegou a batizar o porto de Parati, que virou sinônimo de pinga. Ou foi Parati que batizou a cachaça? A ordem dos fatores não é de grande importância, mas o fato é que alambiques construídos pelos portugueses surgiram em volta do porto ali construído. O Caminho Novo, ligação entre Minas e o mar, facilitou a subida da cachaça para as montanhas, as quais já eram providas, contudo, de diversos alambiques e engenhocas que proliferavam, embora como símbolo de cachaças mais sofisticadas.

A produção logo espalhou-se pela província do Rio de Janeiro, chegando até Campos dos Goitacases, tradicional produtor açucareiro. E tão importante era a bebida, que a região terminou por protagonizar, em 1660, a Revolta da Cachaça, quando os insurretos tomaram e governaram a cidade do Rio de Janeiro durante cinco meses, contra as proibições de fabricação e venda de aguardente.

A cachaça era produzida, normalmente, em pequenos engenhos – as chamadas engenhocas –, e seu consumo estava predominantemente vinculado às camadas mais baixas da população colonial. Em Minas Gerais, por exemplo, a grande produção de aguardente, no século XVIII, deveu-se ao mercado consumidor constituído pelas comunidades auríferas, mas teve como fator determinante, igualmente, a posição peculiar dos engenhos mineiros: sem acesso ao mercado externo, especializaram sua produção no comércio local e em pequena escala.

Depois da Independência, manteve-se um ciclo produtivo ininterrupto, logrando Minas manter-se, ainda hoje, como centro produtor por excelência. Assim, a existência de engenhocas no interior mineiro é atestada ao longo do século XIX por diversos viajantes que percorreram a região no período. Richard Burton aludiu à presença de uma delas em Jaboticatubas, e o Conde de Castelnau, à de outra próxima a Juiz de Fora. SaintHilaire, por sua vez, definiu a cachaça como “a aguardente do País”.

Portanto, como o fumo, a cachaça tornou-se moeda de troca no tráfico de escravos, inserindo o produto em um circuito econômico que ultrapassou o âmbito doméstico e colocando muitos proprietários de engenhocas voltadas para a produção de aguardente em contato com o comércio externo.

Criou-se, contudo, uma dicotomia com os grandes engenhos, dedicando-se prioritariamente ao açúcar e tendo em vista o mercado externo, e as engenhocas – na maioria das vezes clandestinas e sem a aparelhagem necessária à produção de açúcar e muito menos o capital para adquirilo, dedicando-se, de modo exclusivo, à produção de rapadura e cachaça, produtos destinados, majoritariamente, ao mercado interno.

Convém ressaltar que nem só de cachaça e vinho compunham-se os hábitos etílicos no período colonial. Popularizou-se, por exemplo, o aluá, nome africano dado à bebida fermentada de milho, de origem indígena. E mesmo o consumoda cachaça ganhou variantes, como o cachimbo, ou meladinha, cachaça com mel de abelhas.

O consumo de bebidas alcóolicas era compreendido, também, do ponto de vista de remédio a ser utilizados em diferentes ocasiões. Poderia servir tanto como fortificante, tomado pela manhã ou em situações que exigiam grande esforço físico -, quanto como proteção ao organismo, em situações específicas.Economicamente, a cachaça era considerada um produto menos nobre que o açúcar, pois
destinava-se, predominantemente, ao consumo local e, quando exportada, seu destino era a África, não alcançando o cobiçado mercado europeu. Embora pouco nobre, resistiu no mercado e tornou-se cada vez mais popular.

Quanto à relação entre a cachaça e o vinho, criou-se, no período colonial, outra dicotomia que ainda hoje se mantém nos hábitos etílicos do brasileiro. O vinho esteve presente em festas e tradições, como o coreto, reuniões festivas nas quais as saudações, acompanhadas pela bebida, eram cantadas. Permaneceu, assim, uma bebida tradicionalmente associada a ocasiões solenes e à elite, ao contrário da cachaça; vinho de missa tornou-se, nesse sentido, expressão proverbial.

A partir de então, a cachaça passou a ser uma concorrente incômoda para os vinhos portugueses, o que levou a Coroa a proibir sua fabricação. A primeira medida proibitiva data de 1639, indício claro do sucesso já obtido pela bebida. Todavia, nunca se conseguiu alcançar, nem de longe, tal objetivo. Percebendo que a proibição jamais seria bem-sucedida, a Coroa preferiu render-se ao inimigo e explorá-lo a partir de diversos impostos, como a taxa instituída para auxiliar na reconstrução de Lisboa, destruída por um terremoto em 1765, e o subsídio literário, instituído, em Minas, para financiar o pagamento de professores régios

A bebida passou a ser vista, com o tempo, como fortificante e, mais do que isso, como alimento imprescindível para os escravos, o que foi reconhecido inclusive em relatórios escritos por funcionários da Coroa. Aliás, a cachaça e suas variantes, como a pinga com limão e mel, foram vistas, desde cedo, como santo remédio para gripes e resfriados, seguindo costume arraigado no imaginário e na farmacopéia popular que, desde o início, atribui à bebida – consumida, é claro, em doses adequadas – funções terapêuticas.

Ricardo Luiz de Souza
Doutor em História pela UFMG. Professor da UNIFEMM - Centro Universitário de Sete Lagoas. Autor de “Identidade nacional e modernidade na historiografia brasileira: o diálogo entre Silvio Romero, Euclides da Cunha, Câmara Cascudo e Gilberto Freyre” ( Belo Horizonte, Editora Autêntica, 2007 ) e de dezenas de artigos publicados em revistas acadêmicas, entre os quais “Cachaça, vinho, cerveja: da colônia ao século XX. Estudos Históricos, nº 33- Rio de Janeiro - FGV, 2004