A cana surgiu no Pacífico Sul,
seguindo, então, um roteiro que a levaria até à Índia, onde, pela
primeira vez, cinco séculos antes de Cristo, o açúcar dela seria
extraído. Da Índia, migrou para o Oriente Médio, região na qual
foram criadas as primeiras rotas ligadas ao produto. Dali, a cana
chegou ao Mediterrâneo, sendo cultivada, mais de mil anos depois,
nas Ilhas Canárias, situadas no Atlântico. Dessas ilhas, foi
transportada para o Brasil, transformando o Nordeste em seu reino e
transformando-se, já a partir do século XVI, no principal produto
colonial de exportação.
A cachaça, por sua vez, foi concebida,
ainda nas primeiras décadas da colonização, na Capitania de São
Vicente, onde hoje é o estado de São Paulo. No final do século
XVI, registrava-se a existência de oito engenhos dedicados à sua
produção. Inicialmente, a bebida não possuía grande valor
comercial e era feita pelos escravos às escondidas, pois seus
senhores não gostavam de vê-los consumindo-a. Foi assim até que
ela caiu, de vez, no gosto popular – inclusive dos senhores – e
virou, enfim, produto de exportação, entrando nas rotas comerciais
que envolviam o tráfico negreiro, uma vez que encontrava enorme
aceitação na África.
O termo “pinga” surgiu do vapor
produzido pelo lento processo necessário para fermentar o líquido,
na medida em que, ao subir, se condensava no teto e pingava. E a
pinga doía quando caía nos escravos, o que teria gerado outro
vocábulo: aguardente. Hipótese controversa, porém, pois a bebida
proveniente da destilação já era chamada pelos alquimistas
europeus, no século XII, de aqua ardens.
Ainda no período colonial, surgiu uma
diferenciação entre a bebida importada e a nacional. Denominava-se
bagaceira a bebida destilada importada de Portugal, enquanto se
conhecia por cachaça a proveniente do Rio de Janeiro e de Minas
Gerais. O cachaceiro, que posteriormente seria a denominação dada
ao alcoólatra, significava, na época, apenas o comerciante da
bebida. O termo cachaça, aliás, é especificamente
brasileiro. Um profundo conhecedor do assunto, como Câmara Cascudo,
não apenas asseverou a inexistência do vocábulo no Brasil, mas
também afirmou nunca ter ouvido tal palavra em Portugal. Em
espanhol, por sua vez, cachaça é uma espécie de vinho de borras.
A bebida caiu rapidamente no gosto
popular e espalhou-se pelo Brasil à medida que o País ia sendo
povoado. Em Minas Gerais, terra de ouro, de diamante, e de frio, a
cachaça encontrou terreno fértil para produção e consumo. Os
inconfidentes chegaram a elegê-la uma espécie de bebida nacional,
símbolo dos brasileiros, a ser consumida de preferência ao vinho
produzido pelos portugueses, considerado a bebida dos opressores.
Domingos Xavier, por exemplo, um dos
líderes da Revolta, era dono de um alambique e saciava os participantes das reuniões com a
cachaça por ele mesmo produzida. E, adiantando um pouco mais no tempo, é bom lembrar que os
revolucionários de 1817, em Pernambuco, almejaram, também, a transformação da cachaça
em símbolo nacional, em resposta a mais uma tentativa de proibição por parte dos renitentes
portugueses.
Nesse ritmo, a bebida chegou a batizar
o porto de Parati, que virou sinônimo de pinga. Ou foi Parati que batizou a cachaça? A
ordem dos fatores não é de grande importância, mas o fato é que alambiques construídos pelos
portugueses surgiram em volta do porto ali construído. O Caminho
Novo, ligação entre Minas e o mar, facilitou a subida da cachaça
para as montanhas, as quais já eram providas, contudo, de
diversos alambiques e engenhocas que proliferavam, embora como
símbolo de cachaças mais sofisticadas.
A produção logo espalhou-se pela
província do Rio de Janeiro, chegando até Campos dos Goitacases,
tradicional produtor açucareiro. E tão importante era a bebida, que
a região terminou por protagonizar, em 1660, a Revolta da
Cachaça, quando os insurretos tomaram e governaram a cidade do Rio de Janeiro durante
cinco meses, contra as proibições de fabricação e venda de aguardente.
A cachaça era produzida, normalmente,
em pequenos engenhos – as chamadas engenhocas –, e seu consumo
estava predominantemente vinculado às camadas mais baixas da
população colonial. Em Minas Gerais, por exemplo, a grande produção
de aguardente, no século XVIII, deveu-se ao mercado consumidor
constituído pelas comunidades auríferas, mas teve como fator
determinante, igualmente, a posição peculiar dos engenhos mineiros:
sem acesso ao mercado externo, especializaram sua produção no
comércio local e em pequena escala.
Depois da Independência, manteve-se um
ciclo produtivo ininterrupto, logrando Minas manter-se, ainda hoje,
como centro produtor por excelência. Assim, a existência de
engenhocas no interior mineiro é atestada ao longo do século XIX
por diversos viajantes que percorreram a região no período. Richard
Burton aludiu à presença de uma delas em Jaboticatubas, e o Conde
de Castelnau, à de outra próxima a Juiz de Fora. SaintHilaire, por
sua vez, definiu a cachaça como “a aguardente do País”.
Portanto, como o fumo, a cachaça
tornou-se moeda de troca no tráfico de escravos, inserindo o produto em um circuito econômico que
ultrapassou o âmbito doméstico e colocando muitos proprietários de engenhocas voltadas
para a produção de aguardente em contato com o comércio externo.
Criou-se, contudo, uma dicotomia com os
grandes engenhos, dedicando-se prioritariamente ao açúcar e tendo
em vista o mercado externo, e as engenhocas – na maioria das vezes
clandestinas e sem a aparelhagem necessária à produção de açúcar
e muito menos o capital para adquirilo, dedicando-se, de modo
exclusivo, à produção de rapadura e cachaça, produtos destinados,
majoritariamente, ao mercado interno.
Convém ressaltar que nem só de
cachaça e vinho compunham-se os hábitos etílicos no período
colonial. Popularizou-se, por exemplo, o aluá, nome africano dado à
bebida fermentada de milho, de origem indígena. E mesmo o consumoda
cachaça ganhou variantes, como o cachimbo, ou meladinha, cachaça com mel de
abelhas.
O consumo de bebidas alcóolicas era
compreendido, também, do ponto de vista de remédio a ser utilizados
em diferentes ocasiões. Poderia servir tanto como fortificante,
tomado pela manhã ou em situações que exigiam grande esforço
físico -, quanto como proteção ao organismo, em situações específicas.Economicamente, a cachaça era considerada um produto
menos nobre que o açúcar, pois
destinava-se, predominantemente, ao
consumo local e, quando exportada, seu destino era a África, não
alcançando o cobiçado mercado europeu. Embora pouco nobre, resistiu
no mercado e tornou-se cada vez mais popular.
Quanto à relação entre a cachaça e
o vinho, criou-se, no período colonial, outra dicotomia que ainda
hoje se mantém nos hábitos etílicos do brasileiro. O vinho esteve
presente em festas e tradições, como o coreto, reuniões festivas
nas quais as saudações, acompanhadas pela bebida, eram cantadas.
Permaneceu, assim, uma bebida tradicionalmente associada a ocasiões
solenes e à elite, ao contrário da cachaça; vinho de missa
tornou-se, nesse sentido, expressão proverbial.
A partir de então, a cachaça passou a
ser uma concorrente incômoda para os vinhos portugueses, o que levou
a Coroa a proibir sua fabricação. A primeira medida proibitiva data
de 1639, indício claro do sucesso já obtido pela bebida. Todavia,
nunca se conseguiu alcançar, nem de longe, tal objetivo. Percebendo
que a proibição jamais seria bem-sucedida, a Coroa preferiu
render-se ao inimigo e explorá-lo a partir de diversos impostos,
como a taxa instituída para auxiliar na reconstrução de Lisboa,
destruída por um terremoto em 1765, e o subsídio literário,
instituído, em Minas, para financiar o pagamento de professores
régios
A bebida passou a ser vista, com o
tempo, como fortificante e, mais do que isso, como alimento
imprescindível para os escravos, o que foi reconhecido inclusive em
relatórios escritos por funcionários da Coroa. Aliás, a cachaça
e suas variantes, como a pinga com limão e mel, foram vistas, desde cedo, como santo remédio
para gripes e resfriados, seguindo costume arraigado no imaginário e na farmacopéia popular
que, desde o início, atribui à bebida – consumida, é claro, em doses adequadas – funções
terapêuticas.
Ricardo Luiz de Souza
Doutor em História pela UFMG.
Professor da UNIFEMM - Centro Universitário de Sete Lagoas. Autor de
“Identidade nacional e modernidade na historiografia brasileira: o
diálogo entre Silvio Romero, Euclides da Cunha, Câmara Cascudo e
Gilberto Freyre” ( Belo Horizonte, Editora Autêntica, 2007 ) e de
dezenas de artigos publicados em revistas acadêmicas, entre os
quais “Cachaça, vinho, cerveja: da colônia ao século XX. Estudos
Históricos, nº 33- Rio de Janeiro - FGV, 2004