Com 1,3 bilhão de litros produzidos ao ano, atrás apenas da cerveja, a cachaça é personagem do folclore, da música, da literatura, da civilização brasileira, enfim (Jornal UNESP)
Com a marvada pinga é que eu me atrapaio
Eu entro na venda e já dou meu taio
Pego no copo e dali não saio
Ali mesmo eu bebo, ali mesmo eu caio
Só pra carregá é que eu dou trabaio, oi lá
(Clássico do cancioneiro popular brasileiro,
de autoria desconhecida)
Por Evanildo da Silveira
Embora a marvada pinga atrapalhe muita gente, ela também é, pode-se dizer, um personagem da história do povo brasileiro. Surgida praticamente junto com o País, no início a cachaça era bebida de animais e escravos. Aos poucos, no entanto, deixou a senzala e entrou na casa grande e, daí, nas bodegas e nos salões. Atingiu o ápice do prestígio no século XIX, quando se transformou em símbolo da brasilidade: deixar de bebê-la era considerado uma atitude antipatriótica. Explica-se. O Brasil vivia o período das lutas da Independência, como a Revolução Pernambucana de 1817, e erguer brindes com vinho ou outra bebida qualquer era considerado um alinhamento com os portugueses.
Hoje, o Brasil produz oficialmente 1,3 bilhão de litros de aguardente por ano, que é a segunda bebida mais consumida do país — cerca de 7 litros per capita, por ano —, atrás apenas da cerveja, e o destilado mais bebido do mundo, à frente até mesmo do uísque. "O brasileiro bebe muita cachaça", constata Paulo Alves de Lima, do Departamento de Economia da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP, câmpus de Araraquara. "Ela faz parte da vida do brasileiro. É personagem do folclore, da música, da literatura, da civilização brasileira, enfim."
O que Lima fala está embasado numa ampla pesquisa bibliográfica, que ele realizou, com a ajuda de três universitários, sobre a história da alimentação brasileira. O trabalho serviu de base para que o cineasta Ricardo Miranda fizesse o roteiro da série Mesa Brasileira, um conjunto de 10 documentários tendo como tema central a cultura brasileira a partir da culinária. Embora possa parecer estranho, a cachaça também já serviu de alimento. Ela fazia parte da ração dos escravos: os senhores de engenho, principalmente do Nordeste, costumavam dar pinga a eles na primeira refeição do dia, para que pudessem suportar melhor o árduo trabalho nos canaviais.
BORRA DE AÇÚCAR
A cachaça, pinga, aguardente de cana ou caninha (leia quadro abaixo), é uma bebida genuinamente brasileira. Chegou com a colonização. "Nossas primeiras aguardentes foram obtidas a partir da borra de açúcar, o resíduo dos engenhos aqui instalados a partir de 1537", conta o químico João Bosco Faria, do Departamento de Alimentos da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da UNESP, câmpus de Araraquara. "Após a fermentação desse resíduo, hoje denominado melaço, e destilação em alambiques improvisados, os colonizadores portugueses, utilizando a técnica de produção da bagaceira — aguardente feita a partir do resíduo do vinho — criaram nossa primeira aguardente, a cachaça." Faria sabe do que está falando. Ele é um estudioso da cachaça, com oito trabalhos e duas teses sobre o assunto. Uma delas lhe rendeu inclusive uma patente. "Patenteei um dispositivo que elimina o cobre que contamina a pinga feita em alambiques", conta.
O primeiro registro da palavra "cachaça" no Brasil data da época em que Maurício de Nassau governava o Nordeste (1637-1644) e deve-se ao naturalista alemão Georg Marcgrave. Ao descrever a fabricação de açúcar em Pernambuco, ele anota, em 1640: "A primeira caldeira é chamada pelos portugueses ‘caldeira de mear descumos’, na qual o caldo é sujeito à ação de um fogo lento, sempre movido e purgado por uma grande colher de cobre chamada ‘escumadeira’, até que fique bem escumado e purificado. A escuma é recebida numa canoa, posta embaixo, chamada ‘tanque’, e assim também a cachaça, a qual serve de bebida para os burros".
Aos poucos, a qualidade da cachaça foi sendo aprimorada e deixou de ser bebida apenas de escravos e burros. Atraiu cada vez mais consumidores e passou a ter importância econômica para o Brasil Colônia, contrariando os interesses de Portugal. "À corte interessava exportar os vinhos e a bagaceira produzida lá", explica Lima. "Os brasileiros e os colonizadores portugueses aqui instalados queriam produzir e exportar a cachaça. Por isso, durante os séculos XVI e XVII houve um tenso conflito de interesses entre corte e colônia."
RESISTÊNCIA NACIONAL
De acordo com a engenheira agrônoma Márcia Justino Rossini Mutton, do Departamento de Tecnologia da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da UNESP, câmpus de Jaboticabal, nesse contexto a aguardente chegou até a ser empregada como instrumento de resistência nacional, contra a colonização e o imperialismo português. "Ela foi, por exemplo, a bebida da Revolução Pernambucana e da Inconfidência Mineira, contra o vinho importado da Europa", conta. "Fato semelhante é atribuído ao brinde feito com aguardente por D. Pedro I após a Independência, numa época em que se valorizava tudo o que vinha de fora. O mesmo fato se repetiu por ocasião da Comemoração dos 500 anos do Descobrimento do Brasil, quando o presidente Fernando Henrique Cardoso brindou, com o presidente de Portugal, com uma taça de aguardente purinha e gelada."
A corte, por sua vez, diante da crescente importância econômica da cachaça para o Brasil, tentou impor seus interesses pela força. Fez várias tentativas de proibir a produção e o comércio da bebida nos seus territórios coloniais. Em 1635, proibiu a venda da bebida na Bahia e, em 1639, tentou pela primeira vez impedir sua fabricação. Vãs tentativas. "A partir daí, a aguardente começou a ser uma mercadoria de grande importância para o comércio externo", conta Lima. "Ao lado do tabaco e dos tecidos, ela servia de moeda no comércio de escravos". Assim, quando a corte portuguesa transferiu-se para o Rio de Janeiro, em 1808, ela já era considerada um dos principais produtos da economia brasileira e a bebida da terra.
8º DRINQUE DO MUNDO
Hoje, a aguardente de cana continua sendo produzida e consumida no País, mas está longe de ter a importância econômica da época do Brasil Colônia em termos de geração de divisas. Sua participação na pauta de exportações brasileira é insignificante. "Do 1,3 bilhão de litros que produzimos, apenas 6 milhões foram exportados em 1999, representando 7,3 milhões de dólares em divisas", informa Márcia. "Sabe-se que há um espaço, a ser preenchido com a cachaça. Este, aliás, é o objetivo do Programa Brasileiro de Desenvolvimento da Aguardente de Cana, Caninha ou Cachaça (PBDAC). A meta é alcançar exportações de 100 milhões de dólares."
Esse programa foi criado há dois anos, pela Associação Brasileira de Bebidas (Abrabe), para analisar e propor soluções para os principais problemas do setor aguardenteiro. Até agora, a ação do PBDAC tem sido bem-sucedida. Nesses dois anos, seus idealizadores conseguiram tornar a cachaça um dos itens do Programa Especial de Exportação (PEE) do governo federal. Para continuar promovendo e valorizando esta bebida, o PBDAC já tem programadas para este ano participações em diversas feiras internacionais, além de cursos de capacitação técnico-comercial para os produtores e pessoas ligadas ao setor.
A julgar pela aceitação que a aguardente tem em outros países, o trabalho do PBDAC tem tudo para dar certo. É mais fácil convencer os estrangeiros de que a cachaça é uma bebida que merece respeito do que os brasileiros. Por ter sua origem ligada à escravidão, beber cachaça nunca foi um hábito bem visto no Brasil. "Entre os europeus, no entanto, nossa aguardente é uma bebida muito valorizada", diz Márcia. "Na Alemanha, por exemplo, uma boa caipirinha chega a custar 18 dólares." Preço nada supreendente se se considerar que, numa pesquisa recente, feita entre barmans do mundo inteiro, a brasileiríssima caipirinha foi eleita o 8º drinque mais conhecido e consumido do mundo.
Talvez esteja ocorrendo com a aguardente algo semelhante ao que aconteceu com a tequila, no México. "No início, era bebida apenas por índios", lembra Márcia. "A partir de um programa desenvolvido com o propósito de divulgar e valorizar a bebida nacional, por meio de um amplo trabalho de marketing, informação e conscientização da população, hoje essa bebida é motivo de orgulho para o povo mexicano. O mesmo pode se dizer do uísque para o escocês, do vinho para o francês e da grapa para o italiano." Pode ser que demore, mas os que lutam pela valorização dessa bebida, brasileira por excelência, têm certeza que chegará o dia em que dar um taio na marvada terá o mesmo prestígio que brindar com um Romanée-Conti ou degustar um Chivas Regal 12 anos.