PIONEIRO - Hipócrates (D) e Galeano: 1.º a macerar as flores de losna
Como os consumidores de hoje preferem apreciar o vinho puro, explorando suas características organolépticas (que impressionam os sentidos), aquele preparado com substâncias aromáticas está saindo da moda. Mas houve época em que ocupou o pódio. O hipocraz (hippocraticu, em latim), por exemplo, desfrutou de prestígio na Idade Média. Infusão de vinho, mel e ervas, consideravam-no uma das maravilhas da alquimia, a arte que procurou em vão o elixir da longa vida e a pedra filosofal. Usavam-no como medicamento ou era sorvido por simples prazer. Nos banquetes, serviam o hipocraz com docinhos, bolinhos e biscoitos adocicados, ou seja, os atuais petits fours. "Ele reúne a força do vinho, a doçura do mel e o perfume das plantas", proclamavam os alquimistas que o preparavam. Cada um dispunha de uma receita secreta, às vezes levada para o túmulo. A fama da bebida variava conforme a procedência, o aroma, o sabor, a densidade. As receitas mais balsâmicas, estomacais, tônicas, reconstituintes e depurativas do sangue é que viravam remédio.
Sua invenção é atribuída ao grego Hipócrates (460–377 a. C.). Daí o nome hipocraz. O Pai da Medicina teria sido o primeiro a macerar as flores da losna (Artemisia absinthium), consideradas digestivas, estomacais e vermífugas; e as do dictamno (planta da família das rutáceas), tidas como balsâmicas. Misturou-as ao vinho doce e alcoólico de Cós, sua ilha natal. Os romanos aperfeiçoaram a fórmula. Adicionaram tomilho, bálsamo de meca, alecrim e murta, uma planta que o grego Dioscórides, no tratado De Materia Medica, publicado entre 60 e 78 d.C., garantiu "melhorar o caráter das mulheres". Entretanto, o ápice do hipocraz ocorreu na Idade Média, após receber especiarias da Índia e China, distribuídas na Europa pelos mercadores de Veneza e Gênova: cardamomo, canela, coentro, cravo, gengibre, noz-moscada etc.
Combinando esses ingredientes exóticos com plantas nativas dos Alpes, duas cidades do norte da Itália, Turim e Milão, destacaram-se na sua elaboração. Do outro lado da fronteira aconteceu o mesmo. Na região denominada Centro da França e Alpes, as cidades de Chambéry, Grenoble e Lyon também passaram a fazer a bebida, com o nome mudado para vermute. Na Itália, surgiram em Turim as marcas Martini e Cinzano; em Milão, a Carpano, primeira a produzir industrialmente, em 1786. Na França, a cidade de Chambéry se especializou em vermutes secos e delicados; em Lyon nasceu a Noilly, que depois mudou para Marselha, no sul do país.
Há duas hipóteses para a origem da nova designação e ambas nos remetem à língua alemã. Segundo alguns, derivaria de wermut, nome germânico da losna. Para outros, viria de wer (armada) e mut (coragem). Os italianos, pioneiros da produção em massa, grafam vermut; os franceses, vermouth. Antonio Benedetti Carpano, dono da marca homônima, tem muito a ver com a popularização do nome atual. Ele chamou a bebida assim ao servi-la pela primeira vez no Café Marendazzo, da Piazza Castello, em Turim, onde existe uma placa em sua homenagem. A fórmula de Antonio Carpano e as dos demais concorrentes, italianos ou franceses, permanece secreta, a exemplo do que sucedeu com o hipocraz. Sabe-se, porém, que ele usava como vinho base o branco piemontês Moscato d’Asti, colorindo-o com caramelo, um procedimento ainda hoje seguido. Até o século 20, o vermute era tinto. Depois, vieram o branco, o dry e, por último, o rosé. Agora, os produtores trabalham com vinho de boa acidez, estabilizado antes da maceração, que representa 75% da bebida.
A porcentagem restante se divide entre as especiarias (5%) e o álcool etílico (20%), cuja adição faz a graduação subir a 16°. Também é acrescentado açúcar (14% no vermute clássico; menos de 4% no dry), para equilibrar o sabor amargo de alguns ingredientes. A mistura permanece por seis meses em tonéis de aço antes de ser filtrada e engarrafada. Segundo a Grande Enciclopedia Illustrata della Gastronomia (Selezione dal Reader’s Digest, Milão, 2000), mais de 30 substâncias entram na composição do vermute, muitas das quais participavam da composição do hipocraz. A Torre do Tombo, o precioso arquivo nacional português, fundado por d. Fernando, em 1375, guarda uma receita do ancestral do vermute. Em um almofariz, pisam-se 15g de baunilha, 8g de canela, 4g de açafrão, 3g de losna e 2g de gengibre. Juntam-se 50g de açúcar (originalmente se recomendava mel). Dilui-se tudo em 3 litros de vinho branco. Após 15 dias de infusão, filtra-se e se engarrafa. Então, é só beber e deixar a imaginação voltar à Idade Média.
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