Por Celso Nogueira e Maurício Maia
Conhecimentos acumulados em séculos de tradição, solos e clima adequados fizeram do Vale do Paraíba o equivalente paulista da região mineira de Salinas, em termos de produção de cachaça alambicada de qualidade superior. Suas melhores pingas já conquistaram a preferência dos conhecedores.
A maior mancha urbana do Brasil, quase ininterrupta de São Paulo ao Rio de Janeiro, pode induzir quem segue pela via Dutra ao erro. Basta a distância de alguns poucos quilômetros da pista para o viajante sair do ambiente metropolitanos e iniciar um retorno ao tempo dos carros de boi, fazendas de gado para corte ou leite e alambiques artesanais. Das montanhas às cidades litorâneas são vários os caminhos que nos levam até a boa cachaça. Zeloso de suas tradições, desde 1626 o Vale do Paraíba celebra dias santos, momentos heróicos da pátria e festas pagãs com cachaça de primeira.
Entre as dezenas de marcas de pinga no trecho paulista do Vale, duas se destacam: Sapucaia e Mato Dentro. A Sapucaia investiu muito em qualidade e tira o máximo proveito das boas condições da terra para fazer uma das melhores cachaças do Brasil, a Sapucaia Reserva da Família, que pode ser encontrada nas grandes redes de supermercados, provando que um empreendimento altamente profissionalizado pode sim se apoiar na qualidade. Até na retirada da cana ali se usa carro de boi, evitando assim a poluição do óleo diesel dos tratores.
A Mato Dentro é o oposto em termos de porte, mas similar no resultado. Vem de um pequeno sítio nas proximidades de São Luiz do Paraitinga, na beira da via Oswaldo Cruz, que liga Taubaté a Ubatuba. Artesanal mesmo, feita pelo sr. Cembranelli, com distribuição limitada, criou fama entre os viajantes que passavam pela região a caminho do litoral e entrou (ao lado da Sapucaia) no respeitado ranking da revista Playboy, como uma das vinte melhores pingas do País. É difícil de comprar fora do trecho, mas quem quiser pagar mais caro pode experimentar a Série A, da Angelina, nas versões Premium Ouro e Premium Prata. Dentro da garrafa vai a boa pinga Mato Dentro.
Mas o Vale tem muito mais, em matéria de cachaça. A Conceição, de Aparecida, chegou faz poucos anos no mercado, mas é produzida na fazenda de mesmo nome há mais de cem anos. Antes, apenas os convidados a tomavam. Em Caçapava a lendária Alambique do Antenor recebe muitos elogios. Muitos consideram a cana de Caçapava superior à de outras localidades, quando se trata de destilação.
De modo geral, encontramos nos alambiques do Vale do Paraíba uma cachaça típica em seu pronunciado sabor de cana, algo rústica, ligeiramente adocicada, que pode ser tomada nova, mas ganha muita qualidade com o envelhecimento. A madeira preferida na região é o carvalho. Entre as boas canas novas, de preço acessível, destacam-se Fortaleza e Santo Antonio, de Taubaté, Luizense, de São Luiz , a Campeã do Vale, do mesmo alambique da Antenor e a Três Pontes, de Cunha.
Regulamentados
Segundo a Associação Paulista dos Engenhos de Cachaça Artesanal (Apeca), mais de duzentos produtores do Vale do Paraíba fabricam anualmente cerca de 2 milhões de litros de aguardente, quase 2% da produção nacional. Entretanto, apenas 350.000 litros são registrados nos Ministérios da Fazenda e Agricultura. O restante chega ao mercado informalmente. Dos alambiques da região, segundo a Apeca, apenas esses estariam registrados e oficializados:
· Alambique do Antenor, de Caçapava,
· Sapucaia, de Pindamonhangaba
· Jotinha, de Paraibuna,
· Fortaleza, de Taubaté,
· Maria Fumaça, de Jacareí,
· Mato Dentro, de São Luiz do Paraitinga,
· Pinda Boa, de Pinda,
· Padilha, de Natividade da Serra,
· Lugarejo, de Roseira,
· Fortes, de Igaratá,
· Santa Branca, de Santa Branca
· Engenho do Salto, de Guararema
· Conceição, de Aparecida
Contudo, até mesmo a distribuição dos produtores regulamentados é local, com raras exceções, como no caso das marcas Sapucaia e Conceição.
A resistência aos processos industriais é uma das principais características dos produtores da região, segundo declarou ao jornal Valeparaibano o produtor Flávio Ferreira, 42 anos, presidente da Apeca (que tem 25 sócios) e um dos responsáveis pela Campeã do Vale, de Caçapava.
"Nenhum alambique do Vale trabalha com sistema de destilação industrial. Sempre fizemos questão de manter a produção artesanal, na qual a prioridade é a qualidade e não o volume. Em toda a região, a cachaça é uma coisa de família, que passa por várias gerações", disse ele, que apesar de produzir 36 mil litros ao ano, faz questão de comercializar a Campeã do Vale apenas no balcão da pequena mercearia que mantém nos fundos do alambique.
"Sempre fizemos questão disso. Não queremos produzir de maneira desenfreada e não abrimos mão dos métodos que eram utilizados pelo meu pai há mais de três décadas", afirmou Ferreira.
A Apeca planeja criar o 'Roteiro Turístico da Cachaça no Vale'. Com a iniciativa, a associação pretende alavancar as vendas de cachaça e fomentar o turismo nas cidades produtoras.
Um especialista em Bananal
A cachaça Minuca, produzida em Bananal, segundo o presidente da Academia Brasileira da Cachaça, Paulo Magoulas, é “a melhor de todas. Tem aroma excepcional, paladar fantástico” (O Globo, 22/04/2007).
Engels Maciel, o produtor e químico responsável pela produção Cachaça Minuca, diz no site da Prefeitura de Bananal que está feliz com o reconhecimento de um trabalho que desenvolve há mais de 20 anos e que é apenas, “a grande paixão de minha vida”.
Assim, diz, estamos resgatando um pouco das nossas tradições. Afinal, a produção no Vale do Paraíba tem sua origem no século XVIII, quando as grandes fazendas da região ainda plantavam a cana para produção do açúcar. No séc. XIX substitui-se a monocultura da cana pela de café, mas a prática da produção de aguardente já estava incorporada à vida das fazendas e a pinga tinha destino certo: era exportada para a Europa, servia de moeda para a compra de escravos e era apreciada nos grandes salões das luxuosas sedes das fazendas cafeeiras.
A Minuca envelhece no mínimo 18 meses dentro de tonéis de peroba do campo, amandoim ou jequitibá rosa, (madeiras nobres brasileiras) e em tonéis de carvalho, (madeira européia). Curiosamente, pode ser adquirida com mais facilidade no Rio de Janeiro do que em São Paulo. Em Bananal dois outros alambiques fazem as pingas Resgatinho e Real Brasil (fazenda Valmar).
Paraibuna
Paraibuna, entre São José e Caraguatatuba (Litoral Norte), é uma das cidades mais tradicionais em termos de produção de cachaça. Por exemplo, há 10 anos a Pinga Jotinha atende à região de Paraibuna. Com produção média de 10 mil garrafas de 500 ml de pinga por mês, num sítio de três alqueires, o alambique tem também capacidade para fazer 250 quilos de açúcar por dia. Segundo a prefeitura local, Paraibuna tem uma dúzia de alambiques. Além da Jotinha, há as pingas Fazenda Itapeva, Rainha da Pedra, Paulistinha, Vassourinha e Pereira, fora as que não têm nome e são produzidas em condições quase domésticas.
Outras cidades
Em Roseira fazem a pinga Lugarejo. De Taubaté, a Pimba. A Padilha vem de Natividade da Serra, e a Engenho do Salto, de Guararema. De Jacareí temos a Maria Fumaça. Outras boas pingas surgem periodicamente na região, comprovando sua vocação para produzir destilado de cana de qualidade superior. Nos próximos anos, se continuar assim, veremos o Vale do Paraíba ganhar fama nacional com sua cachaça, a exemplo do que ocorreu em Salinas (MG), Paraty (RJ), Luiz Alves (SC), Januária (MG) etc. Afinal, São Paulo é o maior produtor de álcool e destilados de cana do Brasil. Resta mostrar a qualidade de sua cachaça.
Celso Nogueira - tradutor, editor e redator especializado em alimentos e bebidas, trabalha com marketing de relacionamento em uma multinacional e faz traduções literárias e gastronômicas, além de realizar palestras e conduzir degustações sobre gastronomia, cachaça e charutos. Foi um dos fundadores e atuou como diretor da confraria Cigar Club.
Maurício Maia - é publicitário. Especialista em cachaça, presta serviços como cachacier para produtores, bares e restaurantes.